Conto: Parábola do A

Roger Dalcin
10 min readFeb 22, 2022

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Desabrochei defeituoso do útero de mamãe. Má-formação rara, que diferente de meu nome, provinha sem diagnóstico médico. Ao nascer, ainda não se sabia, mas a coisa em mim foi crescendo mais, mais e mais até não se fazer despercebida, e sendo notada, ela se transformava em deformidade. Puramente não seria, mas no confronto irremediável aos olhos humanos, impetuosamente condenatórios, o puro camuflava-se na aparência da falha. Quanta maldade de Deus! Como poderia permitir procedência ao material do infame? Quanta maldade disposta ao olhar humano, e ao meu olhar, que nem humano era, porque eu era incriminada deformada. O, o, desculpa! As vezes erro. Sou falha.

Vamos retornar ao ponto inicial, costumo divagar demais, isso deve ser tirado de mim, sou um perigo em mim mesmo. É que me perco em meu sistema incompleto, e esqueço de me encaixar na verdade do mundo. Reiniciando…

Nasci com um prego em minhas costas. É assustador demais pensar nessa ideia, eu tenho essa consciência, mas em mim, o prego é tão cotidiano que não me horrorizo mais. Pelo menos não dessa forma, me horrorizo de um jeito de quem tem o prego cravado nas costas. Quem sabe seja até a pior maneira de se horrorizar sob algo, na primeira pessoa. É tão aterrorizante como ser um animal, embora nunca fui, penso eu. Mas já pensou? Ser um animal deve ser terrível, porque você é terráqueo ainda que os solos sejam inóspitos a presença magnífica de seu coração etéreo. Nossa, ser um animal é dual, temos dois opostos, o da liberdade e o da repressão, o da plenitude e o da sofreguidão, o da doçura e o da rebelião, entre mais um milhão. Nossa…

Mas o que quero eu debruçando reflexões sobre o reino animal? Eu não sou um animal, eu só nasci com um prego em minhas costas. Livra-me dessas reflexões que não são minhas… ou que pelo menos não deveriam ser, pois se as estou refletindo é porque em mim elucidou-se possibilidade de ascendência. Os olhos humanos são impiedosamente perversos. O que foi me dado (esse presente de asco) ampara mais seus remetentes do que aos destinatários vitimados, eu e meu prego.

Fomos arquitetados em conjunto e de modo gradual, assim que encarnei e respirei por meu primeiro segundo, lá estava o objeto agudo brigando por espaço com meus pulmões. Até onde sei, abriguei ele desde lá, mas não sei muito… a precedência de vida me contesta sobre isso de vez em quando. Era minúsculo, quase abstrato, imperceptível a olho nu, e o mundo via beleza em mim. O mundo via beleza em mim porque eu me apresentava desintegrado. O mundo concebia uma ideia do que eu era, à isto dispunha apreço, ignorava inclusive a eventualidade da procedência de um prego, sempre muito bons, muito dispostos a gostar…

Mas aí tudo foi crescendo. Eu, esse meu defeito infeliz, insistente, a raiva do outro e a dor de mim em mim… quiçá daí que venha essa inconsciente metáfora a um animal. A ferida, ela provém não sei bem do que, desde que me reconheço como “eu”, minhas costas são manchadas de sangue. A tortura é tamanha que essa quantidade imensurável de líquido material de vida, e portanto de dor, é estúpida se contraposta ao que sinto. E tudo o que sinto, todo esse emaranhado de bom e ruim, é permeado por esse prego, ele me toca em tantas partículas do meu ser que ouso discernir suas letras em meu próprio nome. Eu que não tenho nome, eu que de meu nome fui tirado, na tentativa (tentativa? digo, ordem) eterna de condecorar a existência esplêndida de senhores.

Recordo-me do esforço de convivência com meu eu intragável, e recordo-me da desistência. Nunca foi viável, nunca consegui o nomear, a língua brasileira é tão pobre pra meu ser. Amo meu país, amo meu idioma, todavia, meu idioma nunca me pronunciou, nunca estive ali, precisei criar rotas claro, mas oh, seria tão mais fácil pra mim se eu estivesse em minha língua. Arquitetar a fuga foi sim o alívio de minha alma inumana, eu sou o estorvo e a poesia é o que me cabe aqui, a realidade me considera demais. A lucidez magoa tão profundamente que eu preciso me lançar contra viabilidades linguísticas pra encontrar um espaço miúdo que comporte a grandeza de minha falha. Sou uma escória gramatical, a mim foi negado o abrigo no alfabeto, não há expectativas que acatem meu corpo aqui, não há prosperidade. Não há sequer pronome, acabo usando o masculino porque… Por que mesmo?

Eu sei o porquê. Sei, porém sinto vergonha da admissão.

De vez em quando esbarro no A. Ah, me soa liberdade, me soa rejeição, adoro e me amedronto. O A obtém um inigualável paradoxo em sua essência dicotômica. Na libertação e no pronunciamento de si mesma, o A faz-se rejeitada, e na rejeição e condenamento de si mesma, o A faz-se acolhida (ou engana-se pela ideia). Em minha ânsia de encaixar meu seio no enquadramento daquela humanidade, que me gritava desalmada, deliberei a necessidade extremista de arrancar os As da depravada composição de meu prego, e com isso, arrancá-lo por inteiro. Aí que me deparei com a verdade suicida à qual o propósito de meu ser fora condenado:

-Não há cirurgia.

Eu era pecador, minha abjeção e o ódio mutuamente se correspondiam, e isso era insanável. Não havia redenção que abarcasse meu corpo na distância desse prego feito de As, não havia língua, não havia humanidade, não havia alternativa, naquele instante, não havia nada nesse tudo que sou eu. Na revelação de meu destino, tornou-se definitiva em meu pensamento a ideia, anteriormente apenas constante, de que minha integralidade me havia sido amordaçada. Tudo, tudo, tudo me foi tirado, menos essa dor imperdoável de um prego afiado cravado em minhas costas nuas.

Começo, então, a me perguntar. Eu que tinha tantas perguntas à Deus, e que pedia rotineiramente por respostas em formato de piedade, agora me questionava outra coisa. Uma coisa que por algum acaso estrutural nunca havia me sido autorizada, mas que diante da desgraça, tornou-se mero acidente. Eu, todo perdido na incompletude, novamente me identificando com acidentes pela falha.

Começo, então, a me perguntar: Por quê? Essa era a raiz que eu procurava, a raiz do problema, a raiz de mim. A motivação. Qual foi a inspiração pra que eu me ocorresse e ocorresse nesse mundo que é tão hospitaleiro, mas tão anti-eu? “Por que eu aconteci?” me era cotidiano, foi a primeira das interrogações procedidas neste emaranhado animalesco, agora o que eu perguntava era outra coisa: Por que sou desgostada? O, o!!!! Esse porquê caminhava mais enigmaticamente até mim, porque sua resposta era vendada em si própria, proibida por um silenciamento que afeta inevitavelmente todos os trilhos possíveis. Mas à mim, a composição de um trajeto pleno em sua totalidade apenas suspiraria através da suga inexorável desse porquê estranho.

Era um porquê estranho porque era desconhecido, nunca havia sido perguntado, e em sua plenitude tão inexplorada, era um porquê evitado. Essa minha pergunta tão subversiva se vestia como tal pois catucava uma vara grossa de questões naquilo que era consequência do silêncio mórbido. Por que sou desgostada?

Pergunto outra vez. O impacto dessa dúvida segue como um soco indolor ao prego-parte-de-mim. É uma interrogação que em si não representa tanto a desobediência, mas ela se vira do avesso em si própria e sobe pelas paredes de meu pensamento não tanto por seu conteúdo, mas sim por seu destinatário. Essa pergunta tão indisciplinar a este silêncio milenar se potencializa nesta forma pois não é direcionada à minha alma cheia de prego, e demasiada exausta de questões. Ela é para senhores, para esse mundo tão bom que desgosta.

Procuro em meus intensos As a solução para o enigma. Revivo-os e os mantenho em sala fechada, interrogando-os a respeito do outro, esse outro que habita minha sombra. Me temo tanto, me aterrorizo com imensa frequência nesse defrontamento que arrisco, que a familiaridade do medo me lança rotas.

Esse terror de mim, que me mantinha enjaulada na pele de um monstro, iniciava um outro sentido ali, um sentido tão distinto que por um segundo quase recuo, mas que conservo os pés em meu pensamento a fim da resolução enigmática. E lentamente meu pavor encaminha meu eu para a explicação epifânica.

Justo meu cérebro, esse que invariavelmente fora tomado pela burrice desde a infância, e fora educado na inferioridade da ignorância das funcionalidades de uma terra escravocrata, esse mundo que desconhecia e me desconhecia. Para mim, não fazia-se curiosidade, a regra era instantânea e curta: a sentença. Já em mim, a ausência de destreza para/com a vida tinha uma face similar a uma ameaça. E é aí que minha epifania explode em cactos milhares, que cortam, nos mais amplos sentidos, meus ossos feitos de ferro. Epifania… Um sopro em meu ouvido sujo de verdades:

-A verdade bondosa me desconhecia, mas acima de tudo, ela me temia, meus ossos feitos de ferro estremeciam seus pilares de certezas, e o desgosto fora embebido no medo, essa covardia disfarçada nos tiros alçados contra a valentia desobediente à Deus. Por que sou desgostada? Porque sou temida.

Meu Deus, agora o que faço eu com tamanho conhecimento? Com essa informação sigilosa que me constitui acesso a uma grandiosidade que nem sei. Meu Deus, isso é confusão! Quanta confusão criei. À minhas discórdias, entreguei consentimento, e o produto de toda uma pergunta é uma pergunta maior ainda, porque não sei para qual porto partir com o mapa labiríntico me dado. No receio aprendi a me fazer, sou tímida. A timidez, ela me é distúrbio de vítima, só que isso não tem mais futuro também… não sou mais vítima da humanidade bondosa, sou vilania. Nossa, mas o que fabrico na vilania? Agora que me lancei por definitivo nesse perigo que sou, nessa filosofia animal, só exploro… Ah, será que estou explorando as rotas certas?

Dane-se, sou vilã. A maldade me permite, sou a protagonista dessa história outrora povoada por olhares. Sou criadora desvirtuosa dessa narrativa saqueada. Conquisto novamente essas terras colonizadas, provoco a rebelião, tomo o meu, porque é meu, e eu posso fazer do meu uma aspiração maior que esse altruísmo natural, que por ser colonial, é o altruísmo que não calha ao anormal. O que é essa dor que carrego? O que é ela quando sabida temida? Bem, me grito revolução. Ecoo para mim o berro rebelde que arromba as portas do céu de minha boca, ressoa em meu corpo no sangue bombeado e não rescinde mais, transpira de meus poros para habitar e competir aguçadamente no mundo de verdades.

O mal-estar, esse objeto inerente à minha existência, ele não esgota, ele é incansável. É um sofrimento que arrisquei assentir costume, como se ele impedisse novas construções em meu entorno e eu assinasse o contrato sem ler suas fraudes. Mas é uma dor passível de ser reformulada a partir do gosto de respostas, e agora eu sentia esse tempero na boca, o tempero de saber a estrada que uma interrogação conduz. Algumas coisas eu percebi depois da profunda incerteza que me estabeleci, e uma delas era que a dor tamanha à qual o prego me cravava era uma dor específica que eu queria erradicar, mas o prego em si, eu não queria, só essa dor que antes me tinha aparência de vida. Todavia, eu hoje sabia que era temida, eu tinha o rosto da potência, isso me leva a sentir o destino desse prego de um jeito outro.

Eu faço sexo em mim, transo comigo, espeto em minha carne-alvo o pontiagudo desse ferro e vou enterrando-o em uma dor exclusiva e desigual, que me dói em um lugar novo, o lugar do gozo. Pressiono esse objeto cortante, que sou eu, em minha pele e vou fundo, sussurrando o gemido delicioso que vem da alegria. Oh, que prazer! Eu tenho, enfim, o início de um amor…

Eu, que fui censurada em minha própria história, agora nem tinha ideia do que montar com o prazer doloroso que meu eu me emitia. Protagonizar sua própria narrativa, nossa, isso é utopia, é a fantasia que nem existia anteriormente, que nem existia na ideia da probabilidade sequer. E ali eu a tinha, tinha a chance de gerar a herança em meu legado, e não ser novamente submissa herdeira. Avistava em minha biografia esse prego conflituoso, que estou devotamente amando, como quem é atingido por um tiro e aprende a amar na recusa da dor, o avistava e me enxergava puramente como santa. Não era mais prego em minhas costas, eram asas.

Sou ator, sou atriz, na performance cresci, e na performance me reformularei. Essa é a maior vilania a qual eu jamais poderia executar: assumir a mim e me lançar em chances.

Em tempo algum fui maldição, minhas peças que por eles foram amaldiçoadas. Por eles, fui classificada animal, das peças oriundas da depravidade natural. Minha missão aqui é exterminar a maldição. Não, melhor. Minha missão é avivá-la. Apodero-me da calamidade e a transformo na potência de um sonho, a imaginação remotamente abafada. Alimento esse fogo que me queima, e ao acendê-lo, o faço queimar em si próprio. Almejo viver na maldição, revitalizar o inferno, e abrigar a beleza nessa essência de coisa ruim, aqui regozijo a vivência imposta, e nela me instalo com a devoção de um diabo, o diabo deles.

Que bom poder alçar voo! Olha só, agora eu posso voar! Eu, que ao me perder em minha confusão própria, tornei vital uma confusão superior à mim. Pois, na confusão de mim e do mundo tal qual é, eu sonho. Eu fantasio a realidade antigamente impossível, mas agora tão real quanto uma previsão. Alçar voo é bom, é a confusão dolorosa necessária para livrar-me de uma raiz que nem minha é. Esbocei asas em meu prego, condenei meus As à sua própria maldição e os permiti lançar vida temida aos seus juízes desprotegidos do poder animal. Obrigada, obrigada à mim e minha confusão, a felicidade não me é mais meta, ela é rotina.

No temor, voo. No temor, possibilito. No temor, me nomeio, eu que nunca tive nome. Me batizo A no orgulho que me crio, e imediatamente, tenho nome. Meu nome é…

Meu nome é.

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