Especismo: a animalidade no ser humano

Roger Dalcin
9 min readMay 28, 2019

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O especismo é uma problemática que está inserida em todo o contexto social e cultural da sociedade. Foto: Roger Dalcin.

Especismo. No dicionário, significa a atribuição de valores ou direitos diferentes a seres dependendo da sua espécie, no reino animal, significa violência, exploração e morte diária, e no movimento em prol dos direitos dos animais, uma luta consistente para o reconhecimento da sociedade à causa. Os animais são explorados em inúmeras esferas da sociedade em que vivemos, seja nos bastidores da produção de mercadorias para a população, nas indústrias alimentícias, em residências domiciliares, entre outros variados setores. É possível afirmar que o ser humano, em sua maior quantidade, é especista, ou seja, possui a crença de que sua espécie é dominante perante os animais e contribui de alguma forma para o sofrimento e execução destes seres. A problemática que os movimentos defensores da vida animal enfrentam é que significativa parcela das pessoas especistas parece nem compreender o que significa o termo, quanto menos sua relevância para o debate público, portanto, seguem a reproduzir ações que ferem a dignidade dessas vidas.

A contemporaneidade tem trazido debates de bandeiras humanitárias à tona, e atualmente, vê-se de forma crescente discussões sobre racismo, homofobia, ou machismo pelas redes sociais. Na mídia hegemônica, esses assuntos também são frequentes, entretanto, o especismo em si raramente é abordado de maneira completa por esses meios, o que automaticamente, gera um atraso da evidência da causa animal para a grande massa. De acordo com o Linha Verde, do Disque Denúncia, apenas no Rio de Janeiro, foram registrados 854 relatos de maus tratos contra animais apenas no primeiro trimestre de 2019. Já em São Paulo, a Depa (Delegacia Eletrônica de Proteção Animal), da SSP (Secretaria da Segurança Pública) relatou em 2018 que recebe 25 casos do tipo por dia.

Em São Borja, a realidade sofrida dos animais é frequentemente presenciada pela Associação dos Colaboradores e Protetores de Animais (ACOPASB). Vídeo: Roger Dalcin.

Agro é tudo?

A indústria da carne muitas vezes também se envolve com crueldade a animais. Foto: Google.

Você já se perguntou a origem da carne que está todo o dia em seu prato na hora das refeições? Alguns casos documentados desmistificam uma realidade obscura por trás das indústrias alimentícias. A ONG Mercy For Animal calcula cerca de 6 bilhões de animais terrestres abatidos todos os anos em território brasileiro, sendo mais de 95% referente somente a frangos. Investigações dentro desse mercado apontam que os frangos, bois e porcos em geral são separados de suas mães logo após seu nascimento, e muitas vezes, são criados em locais com espaço mínimo até seu abate, quando não executados antes. Os pintinhos machos são completamente descartados por essa indústria, pois como não podem reproduzir, consequentemente são mortos pouco depois que são paridos. A lei no Brasil exige que os animais sejam executados de forma inconsciente, e habitualmente, isso ocorre com o disparo de dardos em suas cabeças, com exposição a eletrochoques ou com a inserção dos bichos em uma câmara com CO2.

A técnica em agropecuária, Miriã Moraes relata um pouco das experiências que presenciou durante seus anos estudando sobre a agroindústria. Segundo ela, apesar de que as leis acima dos abates dos animais fossem a todo o momento lembradas aos alunos, o bem-estar dos bichos mantinha-se apenas na teoria, enquanto na prática a situação era o contrário. “Geralmente ocorria maus tratos com os gados de corte, porque como eles são mais bravos, batiam neles para eles andarem mais rápido, e foi em um desses episódios que um desses animais acabou quebrando o chifre, porque ele estava apanhando pra correr depressa e as aspas não conseguiram cruzar no lugar que ele deveria entrar” relembra a técnica, reafirmando que casos desse tipo não eram permitidos de ocorrer, muito por conta da questão de que se alguma parte do corpo do animal fosse quebrada, as chances de gerar infecções eram maiores, o que consequentemente, prejudicaria a carne da empresa.

Miriã testemunhou casos de violência a animais durante sua formação para se tornar Técnica em Agropecuária. Foto: Roger Dalcin

Contudo, não foi somente o sofrimento dos gados que Miriã presenciou durante sua experiência no local, ela conta que um acontecimento envolvendo um frango também marcou sua memória. A técnica explica que para o abate dos frangos, era necessário primeiramente cortar uma artéria específica no pescoço do animal, que não o permitia sentir dor, para depois colocá-lo na água quente, a fim de desgrudar suas penas, entretanto, certa vez a situação não ocorreu como esperado. “O frango saiu vivo do corte, e o técnico quando foi colocar ele na água quente, tentou matá-lo afogado, e mesmo assim o animal sobreviveu, ou seja, ele foi encaminhado vivo para tirar o bico e as pernas, não faço ideia de como o mataram” relata Miriã. A utilização de antibióticos para o desenvolvimento mais rápido dos frangos também é uma problemática que a técnica identificou durante seu tempo atuando na companhia alimentícia. O uso de tais recursos nessa indústria não ocorre de forma isolada, segundo pesquisas do zootécnico e especialista em nutrição animal da Universidade de Brasília (UnB) Sergio Lucio Salomon Cabral Filho, no cenário brasileiro, para a produção dos frangos, o uso de antibióticos ocorre praticamente em todo o processo. A aplicação de antibióticos em animais, além de ser considerada uma forma de exploração a sua integridade, é também prejudicial à saúde humana, pois culmina na resistência de bactérias e infecções, promovendo doenças e riscos aos consumidores das carnes.

Vidas em testes

O entendimento sobre especismo também inclui os experimentos com animais nas indústrias farmacêuticas e de cosméticos. Foto: Roger Dalcin.

O especismo também se encontra nos laboratórios das indústrias farmacêuticas e de cosméticos. Segundo a revista Veja, é estimativo que 100 milhões de animais por anos são usados em experimentos como esses. Em 2013, um escândalo sobre maus tratos com beagles, coelhos e ratos envolvendo o Instituto Royal assolou o país e mostrou ao público um pouco do que se reproduz em diversas destas empresas. Embora a companhia tenha afirmado realizar todos seus testes dentro das normas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), foram realizados dois boletins de ocorrência sobre maus tratos e furto de animais contra o Instituto.

A farmacêutica e doutoranda em Ciências Farmacêuticas, Gabriela Câmara aponta que os testes para novos medicamentos geralmente são aplicados em animais vivos devido a complexidade do organismo humano. Segundo ela, testes “in vitro” também podem ser realizados, porém, com esse método não é possível fazer uma relação completa com o organismo humano, e somente testes com animais como os ratos, que possuem uma fisiologia e genética semelhante ao das pessoas, podem avaliar os efeitos adversos, dose letal, entre outros parâmetros, garantindo a segurança do medicamento.

Gabriela entende uma certa importância no uso dos animais para a área farmacêutica. Foto: Arquivo Pessoal.

No entanto, Gabriela destaca que a legislação é sempre bem rígida com o uso de animais em testes para remédios, portanto, não são maltratados. “Os animais utilizados nos laboratórios passam por um comitê de ética, onde é avaliado o número de animais que será utilizado e como serão tratados. A criação desses animais em laboratório sempre preza pela qualidade de vida desses animais, eles são mantidos em temperaturas amenas, com caixas isoladas e limpas, comida e água controladas, a morte do animal é de forma indolor, com o animal inconsciente e com o menor estresse possível”, diz ela. A farmacêutica ainda sublinha que embora na pesquisa ainda seja necessária a utilização de animais para garantir a segurança do medicamento, a ciência já começou a investir em estudos com métodos alternativos e que obtiveram resultados positivos, tanto é que o uso de animais para tais experimentos já tem diminuído em grande escala.

Empresas que realizam testes alternativos tem ganhado espaço na indústria, obtendo seu lucro predominantemente em cima dessa consciência ecológica e garantindo o bem-estar dos seres do planeta. Algumas das mais conhecidas no Brasil são a Surya Brasil e a Ecologie Cosméticos, que coincidentemente, são empresas que estão há pouco tempo no mercado.

O veganismo como solução

O veganismo parte da consciência de proteger não somente os animais domésticos.

Grande parcela dos ativistas dos direitos dos animais acredita que toda essa problemática envolta a exploração e crueldade com os bichos pode ser evitada a partir do veganismo, estilo de vida diferente do vegetarianismo, pois compreende uma cultura que vai além da restrição alimentar em cima da carne. Desse modo, os adeptos ao veganismo devem não apenas parar de ingerir carne, como também, deixar de consumir produtos que fazem experimentos com animais ou causam sofrimento aos mesmos de alguma forma, pois possuem a consciência de que não se deve contribuir para tais indústrias, e consequentemente, para tais explorações. O veganismo, portanto, é uma onda que pode ser considerada o mais perto que a humanidade chegou do combate ao especismo, e gradativamente tem conquistado um significativo número de simpatizantes. No ano de 2012, um professor de engenharia da Universidade Drexel (EUA) estimou que uma pessoa vegetariana pode evitar a morte de até 582 animais por ano e, segundo dados do IBOPE, o número de vegetarianos já chega a quase 30 milhões de pessoas no Brasil, sendo em sua maioria, pessoas que consumiriam produtos veganos se houvesse sinalização na embalagem.

Clarissa decidiu se tornar vegana devido ao seu amor pelos animais e sua integridade. Foto: Roger Dalcin.

A estudante, Clarissa Moreira, de 17 anos, como a maioria dos brasileiros, nasceu em uma família carnívora, no entanto, sempre sentiu-se próxima a causa animal. Ela conta que desde a sua infância, quando passou a compreender que a carne que ingeria era origem da morte de um animal, desejou restringir a proteína de seu cardápio, mas convencer sua mãe de aceitar a ideia foi um desafio. “Como era minha mãe que cozinhava pra mim e pra meu irmão, ela sempre fazia carne, então eu sempre tentava não pensar que eu estava comendo um animal morto. Mas uma vez eu acabei assistindo um vídeo de uma vaca sendo abatida, e a partir daí, eu não consegui mais fechar meus olhos pra isso, e contribuir para essas violências passou a não ser mais certo pra mim” relata Clarissa. A estudante lembra que até cogitou cozinhar refeições ausentes de carne para si mesma, contudo, com a decisão de seu irmão de também tornar-se vegetariano, sua mãe apoiou aderir em sua culinária a restrição da carne. Primeiro veio o vegetarianismo, mas logo depois, Clarissa passou a conhecer e pesquisar mais sobre o veganismo, e em pouco tempo já havia aderido ao estilo de vida juntamente de sua mãe e seu irmão, “parar de consumir produtos com leite e ovos também é extremamente importante, pois as indústrias causam muita exploração e crueldade com as galinhas e vacas”, diz ela.

No entanto, Clarissa ainda vê muitas problemáticas e mitos envoltos ao pensar social sobre o veganismo, e revela que a mídia de massa tem interferido muito pouco a respeito disso. Segundo ela, os patrocínios das grandes emissoras de TV, por envolverem empresas de carne e agroindústrias, acabam impedindo os casos de maus tratos com animais serem expostos de maneira mais abrangente para o público, ou seja, abordando sobre escândalos nos frigoríficos, em empresas que realizam experimentos, entre os outros vários segmentos que tais ocorrências são comuns. “Se o veganismo fosse entendido, tenho certeza que muitos o adeririam, além da mídia não mostrar, as pessoas não buscam saber, porque estão confortáveis em suas situações atuais, infelizmente é muito difícil uma pessoa ter a consciência de mudar os hábitos que passou toda uma vida reproduzindo” lamenta a estudante, que sente que para combater o especismo é necessário um trabalho de consciência da humanidade diante dos animais, para além de somente cachorros e gatos.

Confira abaixo um podcast com uma listagem de documentários complementares, que abordam a temática do especismo:

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